sexta-feira, 27 de junho de 2008

UMA COMUNIDADE DA PALAVRA, DA ADORAÇÃO E DO TESTEMUNHO

Revmo. Dom Robinson Cavalcanti,ose

Gostaria de saudar a todos os presentes a esse histórico evento, em nome do clero e do povo da Diocese do Recife. E que Deus nos abençoe esta manhã!

Gostaria de iniciar minhas palavras lembrando que hoje temos Paróquias e Dioceses Anglicanas em todos os países da América Latina: um continente marcado por um cristianismo nominal e sincrético, e, na realidade um imenso campo missionário, onde a fé reformada, evangélica e ortodoxa vem crescendo em números impressionantes. Por outro lado, não podemos nos esquecer daqueles muitos anglicanos ortodoxos nas Províncias do México e da América Central, bem como da nona Província interna da Igreja Episcopal, dos Estados Unidos, que estão isolados, sem pontes conosco e com o que estamos fazendo aqui. Cremos que a Comunhão Anglicana é mais do que uma expressão religiosa da Comunidade Britânica de Nações, pois milhões dos seus membros falam espanhol, francês ou português, o que significa mais do que línguas, porém diferentes culturas e perspectivas. Sinto-me honrado por encarnar esta manhã algo um tanto raro: uma face, uma voz e um sotaque latino em um fórum anglicano de alcance mundial.

Introdução
O nosso tema é a Igreja, e Igreja como “Uma Comunidade da Palavra, da Adoração e do Testemunho”. Estou seguro de que a maior debilidade da Igreja em nossos tempos reside na sua própria auto-compreensão, ou seja, a nossa maior debilidade está em uma desvalorização ou em uma distorção da Eclesiologia. Deve ser a nossa prioridade recuperar a compreensão da Igreja como algo singular, nascido do coração de Deus, central no processo da Revelação e na Economia da Salvação, agência singular do Reino de Deus, e Segunda, e última Aliança. Todas as revelações e alianças do passado cessaram, quando, na plenitude dos tempos, veio Jesus, que nos legou a Igreja. E o reformador Martinho Lutero não se cansava de enfatizar que a Igreja é o Novo Israel, herdeira única das promessas e dos títulos do Primeiro, como bem nos ensina o apóstolo Pedro em sua primeira Carta, 2:9:
“Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”.

Não há mais entre nós nenhum outro povo escolhido do passado, nem nenhuma nação escolhida do presente, senão a Igreja, nação universal de todas as nações sob a Cruz, no seio da qual todas as distinções outras cessam, pois, como afirma o apóstolo Paulo, em sua Carta aos Gálatas 3:28-29: “Destarte não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E se sois de Cristo, também sois descendentes de Abraão, e herdeiros segundo a promessa”. Essa Igreja foi estabelecida por Jesus Cristo como sua, a partir de uma correta confissão de fé, feita por Pedro, como porta-voz do Colégio Apostólico: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus Vivo” (Mateus 16:16b). Sobre ela Ele soprou o Espírito Santo, outorgando-lhe autoridade (João 20:22). Espírito derramado no Pentecostes (Atos 2), que é Espírito de Poder e Espírito de Verdade, e que tem assistido a Igreja por dois mil anos, em seus pecados, fraquezas e desvios, reformando-a, reavivando-a, restaurando-a, até o Grande Dia.

A tragédia da Idade Contemporânea é que o Corpo de Cristo tem sido dilacerado pelo fenômeno pecaminoso e carnal do denominacionalismo. O denominacionalismo, como fenômeno histórico e sociológico do individualismo ocidental é estranho aos ensinos das Sagradas Escrituras, e atenta contra a Unidade desejada pelo Senhor em sua Oração Sacerdotal. A Igreja foi constituída para a Unidade, a Catolicidade, a Santidade e a Apostolicidade. Em sua fragmentação, a Igreja vive em pecado. Como vive em pecado quando se atenta contra a catolicidade, e se fecha como uma seita; se atenta contra a santidade, quando conivente com o erro, e se atenta contra a apostolicidade, quando abandona a sagrada herança histórica do conteúdo da fé.

A Igreja Como Comunidade
Como um ente social, que vive na História – tempo, espaço e conjuntura – que vive sob as leis do Estado, que precisa desenvolver uma Ordem interna, com normas, princípios, procedimentos, ensino, disciplina e autoridades constituídas, a Igreja não pode deixar de ser, também, uma Instituição. O processo de institucionalização não somente é necessário e inevitável, parte do nosso Mandado Cultural, mas toda sua negação radical termina por gerar nova institucionalização mais pobre, e, no caso contemporâneo, na promoção de personalidades fortes e centralizadoras, das mega-estrelas religiosas, totalmente distantes do modelo que encontramos nos Atos dos Apóstolos.

Como uma Instituição, a Igreja é também uma Sociedade, tantas vezes com relacionamentos formais, superficiais e efêmeros. Sendo uma Instituição e uma Sociedade, a Igreja apenas é fiel à sua vocação se vive como uma Comunidade, marcada por relacionamentos profundos, estáveis, duradouros, não resultantes de laços de afeição meramente humanos, mas do amor como fruto do Espírito Santo. Em Atos 2:42, vemos que a Igreja Primitiva perseverava “na comunhão”, e, no versículo 44, que “Todos os que criam estavam juntos...”. E, em 4:32, lemos que: “Da multidão dos que creram era um o coração e a alma”.

Esse vínculo não era de um sentimentalismo sem conseqüências práticas, mas corações transformados resultavam em uma mordomia dos bens para a Obra, com a sua venda depositada “aos pés dos apóstolos”, e, vencendo o pecado do individualismo egocêntrico, marca da natureza caída, não consideravam nada seu como se seu fosse, mas partilhavam comunitariamente, para que não houvesse necessitados entre eles, pois passavam pela metanóia da alteridade, o ser não para si, mas para Deus e para o outro.

Uma Comunidade é algo mais profundo do que uma Instituição e uma Sociedade, e vai muito além das exterioridades e da forma, e sim para a profundidade do conteúdo, para a organicidade do Corpo e da Família.

1. Comunidade da Palavra
A comunidade eclesial é um fenômeno de criação divina, na terra, porém vinculada ao céu, se movendo como um milagre, um mistério, um sacramento de Deus na História, pois, nos diz o texto sagrado que “...e em todos eles havia abundante graça” (At 4:35c).

A sua mensagem não era elaborada a partir dos filósofos gregos ou da tradição rabínica judaica, não era um sistema, mas o próprio Evangelho. No mesmo versículo lemos que: “Com grande poder os apóstolos davam o testemunho da ressurreição do Senhor”. A mensagem era do Cristo crucificado que ressuscitara. E essa era uma mensagem de poder. Não há outra mensagem central para a Igreja em todas as épocas e lugares. Não há mensagem sem a proclamação da ressurreição. E outra que seja a mensagem é desprovida desse poder.

Parte do conteúdo do fruto do Espírito Santo é a perseverança, é permanecer firme, continuamente, a despeito das circunstâncias, dos obstáculos, dos riscos de martírio.

Em que a Igreja perseverava? “E perseveravam na doutrina dos apóstolos...” (At 2:42a).

Perseveravam não só na camaradagem de um gostoso clube religioso ou na teatralidade dos ritos, mas em um conteúdo docente, em um ensino autoritativo, pois esse ensino tinha sido ministrado pelos apóstolos, que haviam recebido do Senhor, e que caberia a cada geração receber e transmitir intacto. O apóstolo Paulo, ao descrever a Ceia, começa com esse preâmbulo:
“Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei...” (I Co 11:23a).

O próprio Senhor Jesus, e os apóstolos, referendaram o conteúdo do Antigo Testamento. E as palavras do Novo Testamento foram inspiradas pelo Espírito Santo, que é um espírito de verdade, e que conduz a Igreja “a toda a verdade”. A ênfase na verdade é sempre uma necessidade, diante do ministério de satanás, que é de engano e de mentira. Ele é “o pai da mentira” (Jo 8:44). Ele é o pai dos falsos ensinos, das heresias, que surgiram no passado, e que ressurgem no presente sob nova roupagem, fazendo que a nossa tarefa seja não apenas apologética, mas, também, de luta espiritual, contra o mundo tenebroso das hostes espirituais da maldade nas regiões celestes (Ef 6:12).

Esse compromisso com a Verdade da pessoa e obra de Cristo, e com o conteúdo da revelação escrita, levou a geração pós-apostólica a nos legar quatro colunas para a continuidade da Igreja: a) a definição do Cânon do Novo Testamento; b) a explicitação das doutrinas centrais nos Credos; c) a definição dos Sacramentos; d) o sistema de governo episcopal, como o mais adequado para a Ordem na Igreja.

A Igreja sempre se debilitou quando deixou de ser uma Comunidade da Palavra. A autoridade da Palavra foi central na Reforma e nos Avivamentos. A nós, Anglicanos, esse é um ensino central dos Artigos de Religião. E é em torno da Palavra e da Verdade que travamos as batalhas decisivas com as forças da mentira fora e dentro da Igreja. Jesus Cristo é a Verdade, e a sua Palavra é a Verdade.

2. A Comunidade da Adoração
O texto do livro dos Atos dos Apóstolos nos dá conta de que os novos convertidos continuavam a se reunir “todos os dias” (At 2:46a) no pátio do Templo, e não o faziam por mera rotina ou senso de dever, mas naquela espontânea vontade de buscar a presença de Deus no lugar determinado para o culto. Sentimento que levou o salmista a exclamar: “Alegrei-me quanto me disseram; vamos à casa do Senhor” (Sl 122:1). E o próprio Senhor Jesus nos dá o exemplo, pois a freqüência semanal da sinagoga era “seu costume” (Lc 4:16a).

Na transição entre a Antiga e a Nova Aliança, e com a destruição do Templo de Jerusalém, os discípulos cultuam nos lares, em espaços abertos, nas catacumbas, e nos novos templos. O texto do Livro de Atos nos fala que eles estavam sempre “louvando a Deus”, e que se dedicavam “ao partir do pão e às orações” (At 2:42 e 47a).

Em cada cristão há uma consciência da criatura que se prostra diante do seu Criador, em atitude de adoração. O finito diante do infinito. O transitório diante do Eterno. A terra diante do Céu. O eu diante do Grande Outro: Pai, Filho e Espírito Santo, pois toda adoração cristã é trinitária. No silêncio de nossas meditações e contemplações, procedemos à adoração individual, que é necessária e importante, mas que não nos basta.

Adoração é, também e sempre, comunitária. Um povo que se ajunta, consciente dos seus pecados, exercitando a diversidade dos seus dons para a edificação conjunta do Corpo, em adoração comunitária, que é alimento para a alma de todos, e de cada um.

Nossas ações resultariam na aridez do mero ativismo; nossas reflexões resultariam na aridez do mero academicismo, se não fossem iluminadas e aquecidas pela adoração, pela transcendência, pelos momentos místicos do Corpo Místico.

E aqui entra a importância da Liturgia, como acúmulo da adoração através dos séculos e lugares, e, ainda, renovada sempre e atualizada sempre, na harmonia entre o solene e o espontâneo, onde a Comunidade da Adoração é sempre Comunidade da Palavra; onde a Comunidade da Adoração é sempre Comunidade Terapêutica, pois a adoração cura os males do corpo, da mente e da alma, e prefigura o dia em que as multidões de todas as raças e línguas se prostrarão diante do Cordeiro, no centro do trono, quando toda criatura dirá: “Àquele que está assentado no trono e ao Cordeiro, sejam o louvor, a glória e o poder, para todo o sempre” (Ap 5:13b).

3. A Comunidade do Testemunho
O que marcava a vida da Igreja Primitiva? Se todos “estavam cheios de temor” diante de Deus, se eles “se mantinham unidos”, se eles “tinham tudo em comum”, se eles se reuniam “com alegria” e com “sinceridade de coração”, se por meio deles “muitas maravilhas e sinais” (At 2:43,46) eram feitos, não havia dúvida da presença e da ação poderosa do Espírito Santo no seu meio, e o impacto sobre o ambiente que os cercava seria inevitável. Por um lado o testemunho de temperamentos e caracteres mudados do alto, e por dentro, resultava “na simpatia de todo o povo”. Não em indiferença, rejeição ou antipatia, mas em simpatia.

Por outro lado, essas marcas tinham um desdobramento missionário, evangelístico, pois “...o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos” (At 4:47b). A multidão dos três mil não se fechara; não se bastara; não estava contente em pertencer ao novo clube santo, mas ela se projetava portadora da mensagem das Boas Novas. Ela crescia, e continuava crescendo. O testemunho era central, porque não era um discurso vazio, mas uma mensagem respaldada por vidas transformadas, que evidenciavam a presença de Deus. Presença transformadora de Deus na afetividade e nos valores, e na parte mais difícil de se converter: os bolsos.

O testemunho era, pois, central, mas não era pelo esforço humano, pela organização, pelos recursos, que os novos salvos iam sendo acrescentados. Era o Senhor quem acrescentava, porque somente o Senhor pode acrescentar. E isso não era feito de vez em quando, em dias especiais, com programas especiais, em dias de cruzadas ou conferência evangelísticas, mas diariamente, todos os dias, sempre, continuamente.

As narrativas de Atos 2 e Atos 4 nos mostram os aspectos simultâneos e complementares entre qualidade e quantidade. E essa é sempre uma dicotomia falsa: a do valor da qualidade que prescinde da quantidade, ou o valor da quantidade que prescinde da qualidade. A Comunidade do Testemunho é uma comunidade de qualidade que se amplia sempre em uma comunidade de quantidade, na harmonia do Grande Mandamento e da Grande Comissão. Qualidade marcada pelo amor, pela unidade, pela verdade; quantidade marcada pela paixão pelas almas perdidas, e pela salvação dessas almas perdidas. Outra dicotomia falsa é entre a prática do amor à custa da sã doutrina e a defesa da sã doutrina à custa da não-prática do amor. Ortodoxia e Ortopraxia são inseparáveis.

A Comunidade do Testemunho se evidencia como uma alternativa e uma contracultura em relação ao mundo que jaz no maligno, onde a obra da carne dá lugar ao fruto do Espírito, de justiça e de paz. Mas ela não pode viver voltada para dentro, mas deve projetar, como
“sal” e “luz”, no meio do drama da História, afirmando os valores do Reino de Deus contra os anti-valores do principado das trevas, afirmativa, proclamativa, profética. É parte da sua missão, questionar os pecados dos indivíduos, grupos, instituições, nações e Estados, denunciar a idolatria, chamar ao arrependimento.

Somos, também, desafiados hoje à reevangelização da antiga Cristandade. Em 2010 estaremos comemorando o centenário de um grande equívoco: a decisão da Conferência Ecumênica de Edimburgo, na Escócia, de excluir a América Latina como campo missionário. Nós, os 25 milhões de protestantes brasileiros – juntamente com outros milhões em todo o continente – somos herdeiros dos que desobedeceram àquela decisão. Quando 600 mil pessoas têm deixado a Igreja de Roma no Brasil cada ano nas últimas três décadas; quando apenas 11% dos seus membros freqüentam a Igreja; quando 50% dos seus membros ativos freqüentam também o ocultismo; quando 70% deles acreditam na reencarnação e não na ressurreição; quando a única presença liberal expressiva se deu com sua Teologia da Libertação, a ortodoxa e pujante comunidade protestante do Brasil mantêm hoje missionários em mais de 100 países.

A Igreja foi, em seu início, uma Comunidade da Palavra, da Adoração e do Testemunho. Ela é chamada a ser sempre assim em todas as épocas. Esse é o desafio atual da Comunhão Anglicana, como ramo dessa Igreja. Que tenhamos coragem para ser. E que O Senhor nos assista com o seu Poder. Amém!

Revmo. Robinson Cavalcanti é Bispo Anglicano da Diocese do Recife.